Dizem que quando uma mentira é contada várias vezes ela se torna verdade. Há 58 anos, um regime de governo baseado em inverdades tomou o poder no país. Com a justificativa de “barrar a ameaça comunista” e “colocar ordem na casa”, os militares assumiram o comando, fecharam o congresso e instauraram uma ditadura por 21 anos. Os frutos desta mentira assombram até hoje a nossa sociedade e a maior prova disso foi a eleição, em 2018, de um então candidato que fazia apologia direta aos crimes cometidos pelo regime militar.
Esta semana, o Ministério da Defesa publicou um documento no qual elogiava o período da ditadura, desprezando as perseguições, torturas e mortes que aconteceram ao longo daqueles anos. Um trecho da nota afirma que: “a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no País, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional”.
O historiador e professor do IFB, Júlio Mangini, explica o que aconteceu naquele período. “Foram 21 anos de tortura, perseguição, aumento da concentração de renda, grande endividamento econômico, aumento da desigualdade social, que favoreceu uma classe burguesa, especialmente as grandes empreiteiras, que tiveram muitas obras nesse momento. Tivemos outros períodos com golpes, mas entre os diversos pactos que as elites fizeram, esse provavelmente foi um dos mais perversos da história brasileira”, afirmou.
Na pele
A dirigente do Sinasefe Brasília, Camila Tenório Cunha, teve as marcas do regime militar impressas na história de sua família. No relato abaixo, ela conta o que seus pais enfrentaram durante esse período.
“Minha mãe cursava Ciências Sociais no curso noturno da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e atuava no movimento estudantil, sendo secretária do Travassos da União Nacional dos Estudantes (UNE), quando estourou o golpe de 1964. Foi neste espaço de tempo da sua vida que conheceu o meu pai. Ele era do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, grupo que saiu de dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas que era a favor da luta armada como única forma de enfrentar os militares, já minha mãe era de um movimento católico, Ação Popular (AP), que não era a favor da luta armada. Era o ano de 1969 e ambos estavam na resistência, cada qual ao seu modo”, explicou Camila.
A sindicalista relata que, ao saber que a gráfica em que imprimiam o material “subversivo” fora descoberta, tiveram que pensar em fuga. “Num desespero louco rasgaram e queimaram papéis, enfiaram o que conseguiram em roupas e trouxas, falaram com o dono do apartamento se aceitava o colchão como pagamento que iriam sair naquele instante. Tentando correr com a barriga de oito meses, minha mãe viu ainda, do outro lado da rua,os carros do DOPs pararem em frente ao apartamento. Na dúvida entre andar para não levantar suspeita e correr porque a emergência dizia para fazer isso, andou rápido, com barrigão e tudo. Pegaram um ônibus e outro e foram parar nos meus avós paternos em São José dos Campos, interior de São Paulo, onde meu irmão nasceu em outubro daquele ano”, afirmou Camila
“Nestes tempos meus pais ajudavam a resistência e os amigos presos, mas não estavam mais no movimento diretamente. Existia uma fala de não torcerem pelo Brasil na Copa de 1970, afinal os militares se aproveitaram disso. Mas então os jogos começaram e foi um tal de tentarem comprar rádios para os companheiros presos, para que eles pudessem ouvir os jogos.”, relata a sindicalista.
Embora a família de Camila tenha conseguido fugir, este não foi o destino de centenas de pessoas que se opuseram ao regime militar. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 434 assassinatos e desaparecimentos políticos aconteceram ao longo daquele período.
“Por tudo isso, não podemos esquecer aquela época dura para que ela não se repita mais. Para que as famílias não precisem ficar escondidas, para que não haja sonhos desfeitos, pessoas queridas desaparecidas e assassinadas apenas porque as suas ideias são diferentes das de quem está no poder”, conclui Camila.