A cor e o gênero da violência no Brasil

Essa semana, recebemos a notícia de que Alessandra, uma estudante negra do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) foi morta pelo ex-namorado, que chegou a sua casa, pedindo reconciliação, com um buquê de flores – e uma faca. Esse acontecimento integra as estatísticas de um país em que os corpos femininos, especialmente os negros, são desumanizados e vistos como objetos pelos homens e também pelo capital. No primeiro semestre do ano passado, 75% das mulheres assassinadas eram negras, três a cada cinco dos casos de feminicídio. 

Os dados, colhidos pelo Monitor da Violência, parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o G1, ainda explicitam que entre as mulheres negras, a subnotificação de crimes como lesão corporal e estupro é maior, pois estas vivem em condições de maior vulnerabilidade em relação às mulheres brancas. 

“As violências perpetuadas contra as mulheres negras decorrem de um sistema de opressão estruturado no racismo, nas desigualdades de gênero e nas desigualdades socioeconômicas. Estão na base da pirâmide das desigualdades sociais, com menores salários, ocupando espaços de trabalho precarizados e informais e acometidas pelas violências das mais diversas. Nada disso é enfrentado sem muita resistência, afirmação e luta, diga-se a fortaleza dos movimentos de mulheres negras, das organizações que neste momento da Pandemia têm realizado o trabalho que o Estado demonstra-se incapaz de fazer. Embora sejam fortes sim, são mulheres que necessitam ser reconhecidas como sujeitos de direito e terem políticas públicas que as acolham, as protejam e as atendam”, afirma a coordenadora do Sinasefe Brasília, Danielle Oliveira. 

Infelizmente essa não é uma realidade só no Brasil. Em muitos países, as mulheres negras são as maiores vítimas de violação de direitos, como explicita o artigo “A violência doméstica e racismo contra mulheres negras”, publicado na Revista Estudos Feministas, de agosto do ano passado. 

“Em nosso país, mulheres negras são 53,6% das vítimas de mortalidade materna (considerada por especialistas uma ocorrência evitável com acesso a informações e atenção do pré-natal ao parto), 65,9% das vítimas de violência obstétrica e 68,8% das mulheres mortas por agressão”, afirma a publicação. 

A professora do IFB, Moema Carvalho, explica como essas violências se iniciaram  ainda no processo de construção da identidade do nosso país. “Recentemente tivemos acesso a algumas pesquisas sobre o DNA do povo brasileiro. Nessa pesquisa tivemos uma alta porcentagem de descendência de homens brancos europeus e de mulheres negras, o que significa que todo esse processo escravocrata que não acabou foi fundado na violência sexual desses corpos dessas mulheres negras. A gente tem histórias macabras, de os filhos tiveram que comprar a mãe para ter a liberdade da mãe e aí se cria o paradigma da mestiçagem”, explica.  Moema também afirma que são essas mulheres que continuam mantendo as cidades funcionando e que elas são os alicerces das cidades. 

“Quando a gente fala que as mulheres negras mantêm essa sociedade é porque elas são as pessoas que estão nos cuidados. A gente vê isso não só com as mulheres que trabalham como empregadas domésticas, nos empregos de auxiliar de limpeza, mas vemos também nas mulheres que são as cuidadoras, que estão cuidando dos nossos idosos, as técnicas de enfermagem, dentre outras. Quando a gente vê que o trabalho de cuidado é o menos visto e menos remunerado, não é à toa. A categoria das empregadas domésticas, por exemplo, foi a única que ficou fora da Constituição de 1988 e dos direitos trabalhistas e a gente está falando de um serviço cuja porcentagem quase total é de mulheres negras. Se a cidade está funcionando, é graças ao ventre, às mãos, o suor, as lágrimas ou o próprio sangue das mulheres negras”, conclui Moema Carvalho. 

“Não podemos deixar esse fato cair no esquecimento”, afirma professor do IFB sobre assassinato racista no Carrefour.

Em memória de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, assassinado covardemente em uma unidade do Carrefour, manifestantes realizaram ontem (26), um protesto anti racista em frente a um dos supermercados da rede, localizado na 402 Sul. Organizada por vários coletivos negros, a atividade teve o objetivo de conscientizar a sociedade sobre a motivação racista do crime contra João Alberto, que no momento de sua morte não apresentava risco e nem possibilidade de se defender. 

“Não podemos deixar esse fato cair no esquecimento. Atividades como essa tem por fim mostrar que o racismo está na estrutura da sociedade. Não foi apenas pela memória do Beto, mas uma denúncia sobre as instâncias nas quais o racismo opera, precisamos continuar esse debate e avançar no combate ao racismo”, explica o professor do IFB Lucas Babosa, que esteve presente no ato. 

Além de falas e cartazes, o protesto pacífico também contou com um ato simbólico pelos sete dias da morte de João Alberto, com caixão, velas e orações. Músicas que abordam a luta e a resistência do povo negro foram ouvidas e cantadas em frente ao supermercado, que fechou as portas logo no início da manifestação. Em torno das 20h30, o ato chegou ao fim. 

Outras cidades brasileiras também tiveram atividades similares nos últimos dias. Desde a morte de João Alberto, no dia 19/11, pelo menos quatro outras capitais realizaram protestos em frente a unidades do Supermercado: São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. 

Os assassinos, Giovane Gaspar da Silva, policial militar temporário, e Magno Braz Borges, vigilante, foram presos em flagrante. Ao todo, sete pessoas estão sendo investigadas pela morte de João Alberto. As demais podem responder pelo crime de omissão de socorro. 

Foto por: Lucas Barbosa.